MINHA METAMORFOSE


História curta que pode ser que seja de interesse para alguém...
de Daniel Héctor Della Valle Cauci.

Depois de chegar aos 56 anos (dois anos atrás) e seguramente não por acaso, sem perceber e dia após dia retomei a tarefa de tecer o futuro ao redor de mim.

Não tinha saído de meu lugar ainda. A vida tinha me dado muito material em experiencias, decisões (das acertadas e das outras), escolhas e renuncias (que acabaram sendo descobrimentos terríveis e maravilhosamente sanadores) ... Tinha me permitido tocar o céu com as mãos por várias vezes... Aliás, ... muitas. Algumas vezes menos das vezes que me levou a conhecer a escuridão e o vazio dos sentidos no fundo do poço da minha própria consciência pessoal. Outrora a vida tinha me obsequiado com companhias que pode ser que não tenha merecido (assim pensava) e que tinham me entregado sem duvidar e tal vez sem saber, parte da enorme riqueza que hoje pende do meu corpo como lantejoulas de um traje de festa. Pessoas luminosas e também pessoas não luminosas, pois todas elas tinham presentes para mim e ao passarem por mim, os deixaram ao alcance das minhas mãos, dos meus olhos, do coração, para me alimentar, me acalentar, para me fazer diminuir o passo quando necessário, para mostrar mi pequenez, para mostrar meu real tamanho, me despertar e finalmente para me fazer adulto.

A vida, tinha me dado tudo. O óbvio, brilhando e batendo nas minhas têmporas, e o não óbvio, brilhando e batendo nas minhas têmporas e em cada cantinho do meu ser. Só que a visão da minha consciência míope já de por se, ficou se deliciando “obviamente”, só no óbvio. E isso fez parte.

Desde pequeno conheci o êxito e a derrota. Uma mistura de realizações que pareciam desentoar com o caos do entorno. A alegria de estar sendo forte e corajoso na realidade de “estar sendo”, e derreter na incapacidade de compreender a outra realidade... subjacente e silenciosa, que emergia quando em solidão olhava para o pequeno espaço do chão que pisava.

Por algum motivo misterioso, por alguma razão que não pretendo compreender comecei a tecer um casulo ao meu derredor, aparentemente para sarar feridas, para me proteger da intempérie que me empurrava cada vez mais perto de um abismo assustadoramente desconhecido.

Nesse processo, na realidade, tive ajuda.
Não pretendo ser tão inconsciente como para me atribuir totalmente tal façanha. Tive ajuda principalmente do medo, da cegueira emocional, da minha saúde enfraquecida e também de lampejos, gotinhas de coragem e sabedoria. Tive ajuda da necessidade e da vergonha de parecer fraco. Tive ajuda das circunstâncias. A aparente perda (que seria irreparável) de um Irmão e uma frase de 4 palavras que uma amiga sussurrou desde minha terra; uma palestra generosa que me assinalou que aos 56 anos, é isso mesmo que acontece; um grupo pequeno de novos amigos que olhou nos meus olhos e simplesmente sorriu, me deixando pequeno e forte; um livro: “Onde estão as moedas” (Joan Garriga Bacardi); e tive como sempre, ajuda e alento na luz do amor das minhas filhas.... Na realidade, tive muita ajuda.
Tive o tempo! Pois como fruto de meu exercício de viver e da minha perícia para ficar só, longas horas de estudo, de contemplação, de análise e síntese foi adubo para a germinação de sementes antigas e novas num canteiro novo.

Assim, comecei a tecer meu casulo. Assim começou minha metamorfose.
Eu, pensando que era para sarar feridas, para me proteger da intempérie..., mas, era outra a razão ou outras as razões. Você vê as feridas que tem que sarar e naquela ocasião o que parecia doer e sangrar de mais, eram na realidade farpinhas e escoriações insignificantes. Criações e ilusões da parte de mim ainda criança. Você vê e sente a intempérie que te congela ou que te calcina... E o que achava intolerável e amedrontador me empurrando desde um mundo teimoso, não era externo e sim simplesmente a vida, como quando estando distraído, um amigo que está detrás de ti numa fila, toca no teu ombro para te avisar que a fila anda... Simplesmente a vida, mas, não como um destino inobjetável e sem sentido e sim como aquilo mais precioso; como presente que chega do profundo e misterioso e nos conduz cheio de motivos e razões por nossos paisagens, desprovidos de livres arbítrios absolutos, cheios de amor e de lealdade e permitindo-nos ter a nítida sensação (só) de ter as rédeas nas nossas mãos.  
Não existe intempérie fora de nós.  

Aos poucos comecei a compreender diferentemente um processo que sempre achei injusto, que, como o envelhecimento parece que nos abala e nos enfraquece. A vida à qual nos expomos, se mostra agressiva de mais e nos desgasta em cada embate, em cada doença, em cada mágoa, nos diminuindo e nos fragilizando.  Podemos ver a vida dessa forma. Mas podemos também inverter esse processo e verificar que em cada embate, em cada doença, em cada mágoa, a vida, com sua força e com sua energia, nos enriquece e contribui para nos conduzir (se permitimos) a algo maior: À completitude. Onde parece que todo termina, triste e enfraquecido, é o fim de uma etapa só para começar outra com mais vigor. Aí onde parece que tudo termina na realidade continua, como diz o Sr. Bert Hellinger, “sem costura”.

Na minha metamorfose, necessitei fazer diferente que a lagarta que, se convertendo em crisálida se isola, se encapsula e modifica e reorganiza todo seu corpo. A minha metamorfose começou quando na sensação de estar despido e órfão, na crise, tive que iniciar uma reorganização pessoal, ao melhor estilo “reset”, como quando o computador da “pane”, redefinindo programas disfuncionais e, no meu caso, prioridades sem sentido e sistemas de crenças obsoletos.
Claro que a gente já possui uma certa bagagem, mas, meus caros, de pouco parecia ser útil tudo o apreendido.  Salvo por uma de minhas práticas mais intuitivas...  “Soltar”, evitar ter ou querer ter o controle da situação. Me esvaziar e esperar pelas indicações da própria vida. E como quase sempre aconteceu, tive respostas. Mais tarde soube de que essa minha forma intuitiva de resolver situações para mim difíceis, era uma forma de aplicação primitiva da fenomenologia que, mais tarde, me abriria as portas a respostas inimaginavelmente ricas e incomensuravelmente profundas.

Para começar a construir o casulo, ainda em construção evidentemente..., em vez de me isolar, estendi pontes, derrubei muros e paredes, reconectei sinapses vitais com a minha ancestralidade, deixei de lutar contra o “não” e procurei dentro de mim as faísquinhas de humildade que me permitiram voltar a ser quem tinha que ser, por ser quem Eu sou, na medida em que fui assim, e pelo preço que paguei para ser assim. E, por favor, não confundam isto com resignação, pois se acreditam que isto é resignação, estaremos numa  sintonia tão diferente, que convidaria a vocês a evitarem a perca de tempo que supõe continuar com a leitura desta história.

Na medida em que comecei a construção, tive que ressignificar muitos conceitos e compreender a profundeza real de cada palavra, de cada sentimento, fugir da superficialidade, aguçar a percepção do realmente importante e me deixar fluir desde a ilusão e do mágico, por definição inexistentes, em direção à realidade cheia de força e de vida que só é achada num plano superior, implícito e tangível como uma força matricial original.
(Muitos podem achar que ilusão, mágica e força matricial podem indicar a mesma coisa. Mas, eu convido a continuar lendo com boa vontade e seriedade. Não são a mesma coisa a não ser que você queira. Então, está tudo bem.)

Na medida em que comecei a construção desse casulo, tive que restabelecer a simbiose entre mim e minha família literalmente desconfigurada. Cheia de dores, vazios, excluídos por ódio e por amor ainda que sempre por amor... Cheia de crenças e de leis não escritas a não ser na pele e consciência dos seus integrantes; gerações e gerações carregadas de poder e de encomendas a resolver “em família”, “pela família”. Tive que apreender a ver a “mi Padre”... que jamais tinha podido ver na sua altura e nas suas circunstâncias, dentro do seu sistema familiar. Tive que apreender a ver a “mi Madre”... que jamais tinha podido ver na sua altura e nas suas circunstâncias, dentro do seu sistema familiar... E assim, tudo mudou. Tudo ficou mais claro e evidente. Inclusive minha ignorância e minha prepotência. Minhas estratégias de conquistador e de super-herói. Minha tentativa infeliz de ser juiz do que acredito conhecer e que na realidade desconheço de cabo a rabo. E só aí pude ver que minhas feridas foram, na verdade, auto infringidas. E compreendi que a intempérie que me empurrou à nova jornada era meu medo a não poder ser o que a vida arcaicamente parecia estar me pedindo ser.

Mas, como falei, não terminei de construir meu casulo. É mais... recém comecei. Ainda a lagarta está inteira. Ainda se pode ver no seu esforço. O que importa de tudo isto, é a consciência de estar onde estou e fazendo o que faço. A consciência de saber que posso tecer meu futuro respeitando integral e sistemicamente quem realmente sou, apreendendo a ser quem sou, cada vez um pouco melhor. O importante é estar no lugar e na hora certa da minha existência, sendo parte dos eventos pela vida e não inerte e incoerente, sem força e gerando consequências negativas na interação com os outros seres deste mundo, ao ritmo de uma música marcial fora das ordenes do amor e que convida à desumanização.
Falta muito para a borboleta.
Que sorte que ainda sou lagarta.

P.S.: Este processo é profundo e em mim ainda inconcluso. Ideias e conceitos dançam e se transformam sem perder minha identidade. Na realidade a minha identidade se expande e reforça suas bases, me deixando mais confiante a partir da inconsistência das opções arcaicas que pairam impiedosas, sempre que me permito observar ao ser humano na sua essência e em direção à vida.  

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